revista da cultura-agosto-2014

A volta das que não foram

28/07/2014

Skip Navigation LinksDesde o tempo das caravelas, as doenças infecciosas atravessam mares e oceanos, mostrando sua capacidade de ressurgir até mesmo depois de serem consideradas erradicadas

POR: XENYA BUCCHIONI  03/07/2014
ILUSTRAÇÃO KAKO

 

Os sintomas costumam ser conhecidos: febre, tosse, mal-estar, coriza. Mas a doença também faz surgir bolinhas vermelhas pelo corpo, que provocam coceira. Ficou na dúvida entre catapora ou sarampo? Provavelmente, as avós – só de olhar! – acertariam o diagnóstico sem titubear. Em todo caso, o melhor a fazer é consultar um médico. Mas, para os fins deste texto, abre-se logo o jogo: trata-se do sarampo mesmo. A doença, que pôde ser evitada desde a descoberta de sua vacina na década de 1960, acaba de atingir o maior nível de contágio nos Estados Unidos em 20 anos.

Entre 1º de janeiro e 6 de junho, foram registrados 397 casos. Segundo dados dos Centros Federais para o Controle e a Prevenção de Doenças (CDC), os poucos casos brasileiros dessa doença, registrados neste ano, foram restritos ao Ceará. Não à toa, a Organização Mundial da Saúde lançou um alerta às Américas considerando o risco da importação do sarampo durante os jogos da Copa do Mundo no Brasil. Afinal de contas, a gente se esquece, mas as doenças infecciosas atravessam mares e oceanos desde o tempo das caravelas e, em solo tupiniquim, a transmissão endêmica do sarampo foi interrompida em 2002 – por isso, o cuidado para que a doença permaneça sob controle.

Outro vírus a colocar o mundo em estado de emergência é o poliovírus – conhecido por causar a poliomielite. Realidade distante para a população das Américas – o último caso data de 1991 –, a doença volta à tona com o surto propagado na Síria, que há 15 anos estava livre de ameaça. Segundo dados da OMS, o poliovírus se propagou do Paquistão para o Afeganistão, da Síria para o Iraque, e para os países africanos de Camarões e Guiné Equatorial. Mas na África, a recente e mais preocupante notícia é o reaparecimento em larga escala do ebola,  febre hemorrágica grave com uma taxa de mortalidade de até 90 por cento. Ainda sem profilaxia ou cura, trata-se do surto mais mortal da doença desde o seu surgimento, em 1976. O alerta se acende na OMS, pois, além de o vírus nunca ter aparecido antes nesta região, há a possibilidade de uma propagação internacional.

Quando doenças infecciosas, que já foram grandes inimigas da humanidade séculos atrás e somem do mapa por algumas dezenas de anos, estão de volta e se alastram, uma questão se faz presente: se há informação, tecnologia de ponta e experiências adquiridas no passado, por que elas são, novamente, motivo de preocupação?

MÚLTIPLAS VARIÁVEIS
No mapa interativo lançado pelo Council on Foreign Relations, é possível ver os surtos dessas e de outras doenças evitáveis por vacinas ao redor do mundo desde 2008. Como explica Laurie Garrett, especialista em saúde global e uma das principais autoras do projeto, antes dos anos 2000, os principais motivos para epidemia relacionavam-se a custo e logística. “As comunidades carentes eram as mais propensas a se contaminar com seis doenças que monitoramos – rubéola, sarampo, pólio, coqueluche, caxumba e ‘outras doenças’”, diz.

Com o passar do tempo, essa tendência tem se modificado e, agora, é possível ver doenças, antes consideradas erradicadas, de volta nas áreas mais ricas do mundo – e nada melhor do que o bom e velho mapa para permitir a visualização do movimento dos vírus em escala global. “Nós combinamos vários meios de comunicação às fontes científicas e atualizamos os dados a cada semana.”

No dia 27 de março, o New York Times publicou um artigo com o título Relembrando como lutar contra o sarampo. A reação entre os nova-iorquinos foi de apreensão, já que as sucessivas matérias publicadas sobre o tema expunham que muitos casos resultavam da exposição ao vírus nos próprios hospitais – locais que, em tese, deveriam seguir medidas, justamente, para prevenir esse risco.

Alguns desses pacientes não foram isolados imediatamente, porque a maioria dos médicos jovens tem dificuldade de diagnosticar corretamente uma doença que havia se tornado tão rara no país – situação compartilhada pela atual geração de médicos brasileiros, segundo Expedito Luna, professor do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo.

Outro fator destacado pela especialista são os focos de contágio, situados entre as pessoas de classe média alta e comunidades ricas, sendo a maioria dos pacientes de origem caucasiana. Diferentemente da década de 1980, hoje, as crianças mais propensas ao contágio encontram-se em belos lugares como Mill Valley, Seattle e Vashon Island.

Relacionado ao movimento antivacina, o atual surto de sarampo revela que o controle de uma doença infecciosa está exposto a inúmeras variáveis. Afinal de contas, ao decidirem não vacinar seus filhos por motivos diversos – do medo de efeitos colaterais à opção por uma vida mais natural –, esses pais demonstraram como a maneira de lidar com uma doença pode ter consequências para além da vida privada.

O FATOR CULTURAL
Durante um longo período da história da humanidade, a maior parte das pessoas morria de doenças infecciosas, como cólera, tuberculose, diarreia. Com a melhora do tratamento da água, do atendimento hospitalar e das condições alimentares e de saneamento, formou-se a crença de que esses males poderiam ser facilmente extintos. Esse excesso de otimismo, como pontua Luna, baseou-se no sucesso da erradicação da varíola em todo o mundo. “Acreditou-se que as doenças infeciosas desapareceriam, mas, com surgimento do vírus HIV, essa teoria caiu por terra”, diz.

Para Dilene Nascimento, médica sanitarista, historiadora e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), refletir sobre o surgimento ou o ressurgimento de uma doença requer levar em conta não apenas o avanço da ciência ou o progresso tecnológico, mas também os padrões culturais da população na qual determinada doença é detectada.

Coordenadora de uma ampla pesquisa sobre a história da poliomielite no Brasil, Dilene pontua que estar doente pode ser visto, em certa cultura, como um castigo divino, assim como a cura ou o tratamento podem ser associados ao poder de uma reza – ligando-se os males, portanto, às questões religiosas. “Em países como o Paquistão, o Afeganistão e Camarões, a pólio, por exemplo, ainda é considerada endêmica e isso está diretamente relacionado com a precariedade das condições de vida e de saúde e com a maneira como a população facilita ou não o controle da doença”, explica.

Do mesmo modo, é preciso levar em conta a estrutura dos sistemas de saúde de cada país e, ainda, a existência de conflitos – como os que, agora, assolam a Síria.

DIRETO DO FRONT
Segundo dados da ONU, em zonas de conflitos, muitos hospitais públicos foram danificados ou destruídos, profissionais de saúde fogem do país e os que permanecem têm imensas dificuldades para chegar aos postos de trabalho. Situação que amplia o risco de surgimento de epidemias, sobretudo ao promover o fluxo de refugiados. Afinal, como pontua Danielle Borges, enfermeira do Médicos Sem Fronteiras, o conflito altera a ordem de prioridades – algo vivenciado por ela em sua atuação em países como a Índia, a República Democrática do Congo, o Sudão do Sul e o Líbano.

A ideia de tomar uma injeção antes de apresentar a doença não é algo facilmente aceita, por exemplo, no Congo – país que enfrenta uma epidemia de sarampo desde 2010. “Criar as condições para uma cultura de prevenção contra o sarampo ou o ebola exige muita conversa com os líderes das comunidades e viagens de longa distância em barcos, canoas, motos, além de um know-how de tecnologia capaz de manter refrigeradas as vacinas, que devem ser armazenadas a temperaturas entre 2 e 8 graus, e de possibilitar o atendimento à comunidade”, conta Danielle.

Apesar das dificuldades de trabalhar em ambientes bélicos ou em locais que se veem às voltas com surto epidêmico, a enfermeira ressalta o lado positivo de poder exercitar o pensamento diagnóstico, já que nem sempre é possível valer-se dos exames laboratoriais. Sem desmerecer a tecnologia, Danielle completa o seu raciocínio e destaca: “Acredito muito na vacinação e acho ser possível, sim, com uma estratégia bem definida, controlar muitas doenças infecciosas”.

TECNOLOGIA
Presente nas discussões sobre os males que colocam em risco a saúde dos seres humanos, a tecnologia carrega os seus bônus e ônus, como avalia a infectologista Ana Gales, diretora do Laboratório Especial de Microbiologia Clínica da Unifesp. “Se o avanço tecnológico nos permite viver mais, ao mesmo tempo contribui para a resistência dos microrganismos, como é o caso das bactérias resistentes.”

Atualmente, um dos maiores perigos à saúde pública de todos os países, essas bactérias produzem uma substância (enzimas carbapenemases) capaz de inativar os antibióticos. O uso indiscriminado do medicamento é o principal responsável pelo surgimento de tal microrganismo mutante, que atinge, normalmente, os pacientes já debilitados e hospitalizados, vítimas de doenças graves ou que apresentam baixa imunidade.

Segundo Ana, hoje, mais do que nunca, devemos rever o uso excessivo de antibióticos nos seres humanos, sem nos esquecer de outro detalhe: “O produto também está presente na ração ingerida pelos animais, pois ajuda a promover o crescimento de bois, aves e porcos”, alerta. Longe de assumir uma visão catastrófica, a infectologista ainda completa: “A luta não está perdida”. Aliás, é nesse ponto que os pesquisadores se pautam por uma visão comum – pensar o futuro a partir de uma concepção integrada de homem e natureza. “Agora mesmo, estamos tentando entender o aumento dos casos de coqueluche entre os bebês antes da idade recomendada para vacinação”, conta Luna. Se o caminho final da empreitada parece nebuloso, o desafio deixa claro que em nossa coexistência com os microrganismos o movimento é permanente. Um processo de contradições, transformações, novidades e alguns recomeços para ambos os lados.

 

VÍRUS E BACTÉRIAS NO CINEMA

Nesta seleção de filmes – cujas fotos ilustram estas duas páginas – feita pela Revista da Cultura, esses microrganismos são a mola propulsora para refletir a sociedade e seus estados controversos – como o preconceito, a intolerância, a xenofobia e o medo.

 

O EXÉRCITO DO EXTERMÍNIO, de George A. Romero
O reservatório de água de uma pacata cidade do interior é contaminado por um vírus desconhecido que transforma as pessoas, deixando-as violentas e enlouquecidas.

VÍRUS, de Àlex e David Pastor
Um grupo de jovens procura chegar a uma praia isolada enquanto tenta sobreviver a um vírus mortal que se espalhou pelo planeta.

CONTÁGIO, de Steven Soderbergh
Uma pandemia começa misteriosamente na Ásia, mata os infectados em poucos dias e se espalha pelos demais continentes.

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, de Fernando Meirelles
Um a um, os habitantes de uma cidade começam a perder a visão. O caos, o pânico e a paranoia tomam conta da paisagem alterada pela misteriosa epidemia de cegueira

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