Revista-da-Cultura-abril-2013

Cidades (in)visíveis

15/04/2013

Em múltiplos olhares e apropriações, elas se configuram para além do óbvio e trazem à tona as camadas de nossa existência. Seja no ir e vir de suas ruas, seja na relação afetiva que criamos, os espaços vivem e pulsam

POR: XENYA BUCCHIONI , 03/04/2013

 

A cidade que salta aos olhos é feita de fluxos – de pessoas, carros, sons e ruídos. À noite, quando se aquieta, sente profundamente a falta do verde e de tudo aquilo que poderia ter sido e não foi. Cidade é ser em trânsito. Organismo vivo em gestação contínua, que evolui através dos tempos pela ação cotidiana dos homens. Até mesmo quando teimamos em ignorá-la, ela espreita. E, ao menor sinal de descuido, nos lança ao acaso, à deriva, ao encontro dos rastros e vestígios que levarão a outros sentidos possíveis para a descoberta inevitável: a de sua existência.
Nas lembranças de Eduardo Queiroga, jornalista e fotógrafo recifense, o encontro derradeiro com a cidade se deu na época em que mantinha um estúdio no Recife antigo, ponto de partida para o surgimento da atual capital pernambucana. A aproximação, como ele diz, aconteceu de uma maneira bem solta: “Eu ando muito a pé. Gosto de observar a cidade e o que me chamava a atenção eram as camadas existentes nas fachadas”, explica.

Como um palimpsesto, as imagens-fachadas captadas pelo fotógrafo revelam o acúmulo de vários instantes. O tempo percorrido preso em uma mesma superfície ou imagem – eis o fio condutor da série intitulada Sobreposições. Nela, estão os casarios, que remetem à fundação urbana, e também as camadas. “Lugares onde você tem uma porta antiga, vem alguém e pixa em cima, vem outro e cola um cartaz, aí o tempo passa e nasce uma planta em meio às paredes”, diz Queiroga.

Em Sobreposições, o olhar atento permite que se avance – ou retroceda – nos vários tempos daquela paisagem. Em cada momento, uma utilização e utilidade deixaram sua marca. Por vezes nenhuma. Ocupações. A cidade vista como uma simbologia complexa da existência humana. Riqueza e miséria, progresso e atraso, existências revitalizadas e reformadas. A presença do homem feita de marcas e marcos.

 

CAMINHOS REFEITOS

Nem mesmo o traçado mais preciso está imune a revisões. Em Brasília: (cidade) [estacionamento] (parque) [condomínio], projeto vencedor do prêmio Funarte de Arte Contemporânea 2012, os dois artistas do coletivo Poro, Brígida Campbell e Marcelo Terça-Nada, se lançaram a esse desafio com intuito de compreender o cotidiano da capital brasileira.

Depois de seis meses de caminhadas intituladas “derivas” e, aproximadamente, um ano de trabalho, as respostas vieram na forma de um guia afetivo do Distrito Federal. “Os mapas da cidade mostram, de um modo muito cartesiano, como ela foi pensada. Por isso, uma das nossas propostas foi rebatizar algumas áreas”, conta Terça-Nada.

 


Ao tensionar o tempo sob o qual a capital foi inscrita, a dupla trouxe à tona os vestígios do diálogo permanente entre a cidade-projeto e seus habitantes. “Mantivemos o olhar de quem está de passagem, procurando falar sobre as camadas que a gente acessava à medida que questionava as maneiras como as pessoas se locomoviam, a existência ou não de um centro, do comércio informal.”
Do ideal modernista de suas formas arquitetônicas e urbanísticas, Brasília emergiu em outros caminhos possíveis – feitos e refeitos na vida cotidiana atravessada pelo zoneamento da cidade.

Não se trata, portanto, de apenas retratar as paisagens imaginadas e projetadas pelo urbanista Lúcio Costa. Pelo contrário, o que vemos, sobretudo na série Fora do grid, é a ramificação da existência para além do planejado.

O improviso (talvez) inerente à ação humana como forma de revelação de um processo sempre inacabado, avesso a qualquer tentativa de delimitação.

Nas fotos aéreas, a cidade-matéria-prima revela, também, um elemento muitas vezes despercebido: a rua. Objeto de estudo do coletivo selvaSP, ela uniu, há pouco mais de um ano, oito fotógrafos com formações diferentes e de regiões distintas – São Paulo, Campinas, Guarulhos, Belo Horizonte, Manaus.

No manifesto do grupo, uma inspiração de peso: João do Rio, para quem a rua é um ser vivo imóvel em constante mutação, que pensa, filosofa e tem até religião. “Seria presunçoso por conta de nossa geração acreditar que a rua estivesse esgotada, ainda mais vivendo em uma metrópole como esta”, reflete o manifesto do selvaSP.

O coletivo aponta ainda como decisiva para a sua formação a experiência recente de sites estrangeiros como o In Public, criado em 2000 para reunir o trabalho de fotógrafos de rua. Muitos integrantes do selvaSP já se conheciam pelo Flickr, mas o encontro presencial em eventos e festivais de fotografia foi crucial para a formação do grupo. “O Gustavo [Gomes], eu conhecia há anos das redes sociais. Eu o seguia e favoritava seus trabalhos, mas nós fomos nos conhecer pessoalmente por causa do selva”, conta Leo Eloy.

Característica dos tempos atuais, as tecnologias de comunicação exercem outro papel fundamental para o grupo: o de ser uma plataforma para a divulgação do trabalho realizado. Apesar de eles se intitularem um coletivo, os trabalhos são assinados por autor e, como explica o fotógrafo Drago, a intenção é seguir dessa forma – cada um responsável por suas criações, mas com um interesse em comum.

Com trabalhos expostos na mostra paralela à Bienal de São Paulo, no ano passado, o selvaSP começou 2013 com novos projetos e um desafio: refletir sobre “como viver em uma cidade como São Paulo?”. A resposta, como reforçam Eloy e Drago, virá com o tempo, sempre no ir e vir das ruas da metrópole.

 

OLHARES E NARRATIVAS

Em quadrantes opostos, está o ensaio urbano de Louise Chin e Ignacio Aronovich, La Danse du Chaos, que buscou uma interação com a paisagem paulistana ao usar o espaço público como suporte para a expressão pessoal. Composto pelas séries On the wall e Off the wall, o trabalho dos fotógrafos leva para a realidade dura e embrutecida da rua os belos e suaves movimentos do balé. As propostas são distintas: no primeiro ensaio, imagens de uma bailarina são afixadas pela cidade, em comemoração aos 150 anos da fotografia, em 2009. Já na segunda empreitada da dupla, a bailarina ganha as ruas em “versão carne-osso”.

 

 

Com passagens pela Alemanha, Estados Unidos, Itália, e Áustria nos últimos anos, Lost Art constitui-se como um work-in-progress e parte da concepção de humanização da cidade pela arte – daí a escolha, em On the wall, por deixar as fotos visíveis ao público, que não necessariamente frequenta galerias e museus. O resultado dessa opção, dizem os fotógrafos, pode ser conferido em um ensaio colaborativo fruto da interação entre a bailarina e o público, registrado no site www.lost.art.br. Efêmeras, essas imagens alertam para o fato de que a beleza também depende do exercício de olhar.

Para Mariano Klautau Filho, fotógrafo paraense autor das séries Finisterra, de 2004 a 2008, e Depois do fim, de 2011, as visões possíveis sobre momentos particulares, encarados muitas vezes de relance, são a substância necessária às suas produções. “Em meus trabalhos, a paisagem urbana atua como personagem principal ou como coadjuvante muito especial, pois serve de elemento narrativo possível de um certo estado de suspensão: doa personagens que surgem nas cenas”, explica.

Assim, os ensaios configuram-se como micro-histórias, formadas de dípticos ou trípticos, em que paisagens internas e externas são trabalhadas em um exercício ficcional com a fotografia a partir do elo entre as memórias urbanas e individuais. “Fiquei livre para me apropriar de imagens não necessariamente feitas por mim, incluindo-as como potência ficcional a ser assumida na fotografia. Desgarradas de seu sentido de origem, o que me interessa são as imagens mentais que elas criam para o espectador.”

 

Em uma espécie de jogo episódico, as fotografias de Klautau dão conta dos pequenos momentos em que a intimidade se confronta com cidades não identificadas. E o caso é este mesmo: acontecimentos comuns de um lugar qualquer. Mais uma vez, vestígios e traços. Arranhões da existência a nos lembrar de que estamos por aqui de passagem.

Leia a revista na íntegra.

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