Revista-da-Cultura-dezembro-2013-1

Liberdade estrangeira

02/12/2013

Entre a perda de raízes e o sentimento de pertencimento, o desconforto de tentar se localizar em uma sociedade e cultura coloca em questão a ideia do ser-humano livre, lançando-a as estranhezas da experiência do deslocamento

Passamos por uma ditadura civil-militar. Não estivemos na Guerra do Vietnã e nem participamos ativamente da descolonização africana. Lançamos um e outro cantor simpatizante do movimento hippie e vimos os jovens do mundo inteiro divididos entre o bom mocismo dos Beatles e o radicalidade dos Stones. O fascínio dos anos 1970, definitivamente, alcançou o solo brasileiro e marcou presença na radicalização das experiências comportamentais vividas naquele período: a década da contracultura, do underground, dos jornais, dos livros e das revistas independentes. Uma época em que o desejo de mudar o mundo se viu transmutado pela urgência do encontro consigo mesmo. Tempos em que a liberdade (palavra tão desgastada pela publicidade) parecia estar ao alcance das mãos.

Mas o que é estar livre? Entre a rota que vai de Pireu, na Grécia, a Alexandria, no Egito, passageiros de diferentes nacionalidades se aglomeram em um navio (eles não sabem, mas estarão às voltas com essa questão). Em seus pertences há um pouco de tudo e desejos variados: uma nova vida, um recomeço, uma oportunidade. Junto a eles surge, desconfortavelmente, a imagem viva e encarnada do vagabundo. O símbolo do desarraigo de costumes, de ofício, de nacionalidade. O espírito livre cuja existência torna-se motivo suficiente para incomodar os viajantes ante suas próprias certezas – ante os conflituosos limites entre cultura, identidade e nacionalidade impostos pela experiência do deslocamento.

Neste cenário, criado por V.S Naipaul no prólogo do livro “Num Estado Livre”, vencedor do Book Prizer, em 1971, expatriados, fugitivos, imigrantes e nativos nos falam sobre o ser-humano na difícil encruzilhada entre o pertencer e o desenraizar-se. Algo que a geração dos anos 1970 também colocou em evidência ao mergulhar para dentro de si, desconstruindo modelos e padrões num momento em que o mapa do mundo se redefinia entre os ventos do capitalismo e do socialismo, e o assoprar, ainda tímido, da ideia de globalização.

Não à toa, o vagabundo de Naipaul é quem ironiza esta situação: “Mas hoje em dia o que vale a nacionalidade? Eu mesmo penso em mim como um cidadão do mundo”, dirá ele a um solitário Iugoslavo depois de detalhar viagens e datas em um monólogo apressado e vazio. Falas semelhantes percorrem as cinco narrativas do livro. Juntas, elas formam histórias independentes entrelaçadas pelo sentimento de estranheza de personagens que parecem não reconhecer a si próprios nos locais onde se encontram, distantes de suas origens. Vidas sem ponto de chegada, em fluxo – um percurso pelos meandros da existência de cada um de nós.

Em tempos que parecem querer nos preencher (ou nos convencer) de identidades múltiplas, “Num Estado Livre” ganha nova edição pela Companhia das Letras e nos lança o convite à dúvida: é mesmo possível estar (ou ser) livre?

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