Revista-da-Cultura-Marco-2013

Molduras possíveis

15/03/2013

De madeira, isopor ou acrílico, elas permanecem através dos tempos e revelam intenções, (re)leituras, humor, além do diálogo permanente entre os artistas contemporâneos e suas obras

POR: XENYA BUCCHIONI  /  12/03/2013
Foto: divulgação

 

As obras se sucedem espaço afora. Em um único tempo: o do artista. À medida que se avança, desenhos e pinturas, letras manuscritas, recortes e rascunhos, colagens e sobreposições – e tantas outras formas de experimentação – evidenciam a existência de um corpo a corpo. Com a moldura, não é diferente: ela atravessa os tempos metamorfoseando-se num diálogo incessante entre o artista e seu trabalho. Muito além de sua função tradicional de proteger a obra de arte e delimitá-la no espaço arquitetônico. Talvez porque a palavra mais importante para a arte contemporânea seja possibilidade.

– Nesse trabalho, a moldura se confunde com o próprio suporte da obra. É impossível esse trabalho existir sem aquela moldura.

– Pois é. O que me chamou a atenção foi, justamente, a escolha do acrílico.

 – Sempre procuro traçar a escolha do material a partir de um conceito. A ideia dessa série, chamada de ‘Fotocromáticos’, era conseguir um backlight natural, porque a imagem da obra é uma transparência, um fotolito. Então, quando a luz passa através da moldura, bate na parede e meio que acende o trabalho.

 Sem pressa e tranquilo, Marcelo Moscheta conta sobre o processo de pesquisa e escolha de materiais para dar vida ao Ártico que ele encontrou em sua expedição ao local. Reunidas na exposição Norte, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, de dezembro a fevereiro passado, suas obras revelam seu gosto de ser uma espécie de garimpador. Suas molduras inusitadas não lhe deixam mentir.

Ny-Alesund, que integra os trabalhos de sua última produção, teve sua moldura feita a quatro mãos – as do artista plástico e de seu moldureiro, Nilton, da Votupoca Molduras. “Ela partiu de um processo em que eu estava descobrindo como usar a moldura, pois precisava regular, de alguma forma, o laser utilizado na obra”, conta Moscheta. A solução encontrada se deu em seu ateliê, onde os limites da moldura foram exaustivamente testados por três meses até que – voilà – um suporte acoplado a ela fixou o laser, cujo feixe de luz foi transformado em uma linha centralizada no quadro. Estava concluída a simbiose entre obra e moldura.

 ACOMPANHANDO AS ÉPOCAS

A normalidade dessa relação simbiótica foi cristalizada pelo pensamento pós-moderno. “Na maioria das vezes, entende-se a moldura como parte da obra – às vezes não –, mas normalmente entende-se que sim, que a moldura é uma continuação da obra”, afirma Eliana Filkenstein, sócia da galeria Vermelho.

Como explica Ricardo Resende, curador e diretor do Centro Cultural São Paulo, foi no período Barroco, sobretudo a partir de 1700, que as obras de arte começaram a dialogar mais diretamente com a arquitetura dos espaços. “Como as paredes eram cheias de elementos arquitetônicos, surgiu a necessidade da moldura, que passaria a ser o distanciador entre a obra de arte e a parede que a suportaria”, diz. Na transição para o século das Luzes (18), com a ascensão da razão e da ciência sobre a fé e a religião, as atenções voltaram-se para as obras. As paredes, agora, seriam neutras.

De lá para cá, muitas mudanças aconteceram: da proposta radical, no início do século 20, do holandês Piet Mondrian (1872-1944), o primeiro artista a colocar a tela à frente da moldura durante suas experiências cubistas, integrando a pintura à parede, até a desmaterialização da própria parede, com o fim total da moldura e o lançamento de um novo conceito – o de instalação. “Não se tratava mais de expor obras de arte, mas também de criar uma atmosfera no espaço expositivo em que elas estavam sendo apresentadas”, pontua Resende.

Se é fato que a moldura já não desperta debates acalorados ou ocupa um ponto focal nas discussões infindáveis sobre a arte, também é certo que ela segue sendo pensada na contemporaneidade – por artistas, pelos curadores, pelos moldureiros e pelas galerias.

 

 

LIMITES E POSSIBILIDADES

– Quando o assunto é moldura, as possibilidades são inúmeras. Já emoldurei de tudo, até paralelepípedo. Um trabalho bem difícil, porque tivemos que fazer uma profundidade maluca e a moldura tinha que segurar essa pedra.

– Então, é possível falarmos de uma “moldura ideal”, certo?

– A moldura é sempre muito bem pensada. Quando utilizada pelo artista, deve estar em harmonia com a obra pela cor, pelo material ou pelo modelo. As que eu mais faço para as exposições são as tradicionais caixas brancas, a moldura-caixa. Ela deixa o trabalho distante do vidro.

 



Com uma cartela de clientes que inclui as galerias Nara Roesler, Zíper, Millan, Casa Triângulo, Aleide Alves ainda conta que faz parte de seu trabalho saber interpretar a intenção do artista. À frente de sua própria molduraria há 16 anos, ela pausa uma ligação, levanta para atender o interfone e, de um canto repleto de papéis e madeira, retorna com um modelo de moldura similar à confeccionada para a mostraLeonilson: Sob o peso dos meus amores, realizada no Itaú Cultural em 2011. Em formato “L”, a moldura em questão abrigou uma obra em que Leonilson (1956-1993) trabalhou a frente e o verso do papel. A ideia era mostrar ambos os lados para o público – daí o formato e o sistema de fixação especial feito pela moldureira, mas pensando em conjunto com o curador da mostra, Ricardo Resende.

Ainda sobre a exposição em questão, Resende revela uma curiosidade: o artista deixou um modelo como padrão de emolduramento dos seus desenhos, que foi adotado pelo projeto Leonilson, por museus e galerias e pelos colecionadores de sua obra. Trata-se de uma moldura simples e neutra feita de acrílico branco nas laterais.

HUMOR E IMAGINÁRIO

Focado no desenho contemporâneo, o artista plástico Claudio Matsuno explora os modos de exibição de sua obra por outro viés: o do processo de criação. “Comecei a ver a moldura como um objeto. Ela se tornou algo plástico para mim”, explica. Com pitadas de humor e subversão, Matsuno traz o improviso para o espaço expositivo: são molduras que não emolduram, intervenções feitas diretamente na parede, rascunhos e rabiscos ou suportes não tradicionais, as suas matérias-primas. Para ele, a exposição individual é como um experimento, e não o palco onde será apresentado um trabalho final.

“Em um dos meus trabalhos, um papel meio amassado aparece fugindo da moldura com o escrito: ‘repulsa à moldura’. Em outro, a moldura não tem desenho algum, mas ela é pintada”, conta Matsuno, que também já a explorou até mesmo desmontando uma tela inteira finalizada – tirou o chassi, enrolou a lona e apresentou o trabalho dessa forma: desmontado. A intenção, frisa o artista, não é negar a tradição, apenas instituir a brincadeira e o acaso.

 

 

Em trajetória oposta, estão as molduras entalhadas do paranaense Rafael Silveira, que além de batizar sua exposição Portais dimensionais visíveis a olho nu, em cartaz na Choque Cultural, no ano passado, constituem-se como uma leitura contemporânea do passado. Caveiras estão entre os seus adornos preferidos.

As versões do artista para a pintura renascentista são resultado de um mergulho profundo no que ele chama de universo paralelo. “Sinto-me como um pintor viajante do século 17 enviado para o ‘novo mundo’ com o propósito de retratar as paisagens, espécies e cenas do cotidiano de terras distantes. Mas em vez do ‘novo mundo’, estou desbravando outra dimensão”, diverte-se.

 

Barreira ou fronteira entre o real e o imaginário, como bem pontua o artesão Jaime Vilaseca, molduras podem fazer parte do trabalho – ou ser ele próprio. Não é a toa que, ao confeccionar suas versões para a obra A line in the Arctic, Moscheta tenha escolhido o isopor.

– Para mim, ela lembra o gelo, o frio e todo o clima que você vivenciou.

– Nesse caso, o trabalho não é só uma foto. Passei mais tempo pesquisando a moldura do que trabalhando em cima da fotografia.

E, assim, o trabalho tornou-se um objeto. As pessoas, provavelmente, vão se preocupar muito mais com a moldura do que com a obra em si. Moscheta gosta dessa inversão de valores. E a arte segue em seu campo de possibilidades, até que outros olhares façam-se possíveis.

 

 

UM POUCO DE HISTÓRIA

 

Foi com uma carta de recomendação endereçada a Candido Portinari (1903-1962) que Tadashi Kaminagai (1899-1982) fincou os pés em solo brasileiro. Pintor e restaurador japonês, ele deixou o país de origem em meio às turbulências da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e fixou-se no Rio de Janeiro, em 1941 – período em que se dedicou às atividades do ateliê e da oficina de molduras por ele instalados no bairro de Santa Teresa.

Criador das chamadas molduras patinadas, Kaminagai realizou uma série de experimentações em busca de um acabamento com ares de envelhecido até alcançar o resultado que o deixou mundialmente conhecido – sobretudo na primeira metade do século 20.

Henri Matisse (1869-1954) e Marc Chagall (1887-1985) são alguns dos representantes de peso que fizeram uso das molduras do artista japonês, que deixou o Brasil em 1954. Obras de Paul Cézanne (1839-1906) e Vincent van Gogh (1853-1890) também receberam suas criações.

Na passagem pelo Brasil, Kaminagai levou o mérito de ter sido professor de artistas brasileiros, como Inimá de Paula (1918-1999) e Flavio Shiró (1928). Antes de retornar à terra natal, ainda teve sua primeira exposição individual organizada por Portinari.

Em quadrantes opostos, encontram-se as inquietações de Wesley Duke Lee (1931-2010). Apesar de ter montado em sua própria casa uma oficina de moldura – a Rex Molduras –, lá pelos idos de 1970, o artista plástico apostou na proposta de sair do quadro e ganhar o espaço expositivo.

Antecipando linguagens, Wesley atravessou estilos, hibridizou materiais, meios e suportes, criou ambientações e expandiu o conceito de pintura para além do quadro de cavalete. Autor do primeiro happening encenado no país, em 1963, no João Sebastião Bar, Duke Lee rompeu os paradigmas da arte tradicional e questionou o papel comercial das galerias, liderando o Grupo REX – formado por Nelson Leirner, Carlos Fajardo, Frederico Nasser e José Resende.

Leia a revista na íntegra.

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