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A comédia do urbano

04/02/2012

Ciúme, traição, sexo, vícios e neuroses universais atravessam os tempos e acompanham o traço dos cartunistas que fazem do humor de costume um talentoso retrato da nossa sociedade

A cena é comum: um paizão de primeira viagem encosta no berço do filho e sem titubear arrisca estranhos movimentos. Olhos, boca, língua e nariz acompanham a sinfonia caótica dos lábios. Eis a boa e velha careta a pleno vapor na busca pelo riso. Puro ato de humor. E na visão do cartunista Nani o menor caminho entre duas pessoas.
Mas não se enganem aqueles que pensam que só de alegrias vive o humor. O riso – sua função essencial – é para lá de polêmico. Volta e meia se rebela, ganha o mundo e mesmo com boas intenções cerra dentes e torce narizes, sobretudo diante da atual onda do politicamente correto. Nani sabe bem disso: recebeu uma enxurrada de e-mails pouco amigáveis ao usar uma metáfora sexual para retratar a presidenta Dilma Rousseff. Para o cartunista vivemos, atualmente, a censura velada. “Cada um quer impor a sua moralidade a todas as pessoas”, explica. Na visão de Toninho Mendes, editor e criador da Circo Editorial, o politicamente correto é, no mínimo, ilógico. “Humor é desrespeitar o que está estabelecido. Como é que você vai desrespeitar, respeitando”, diz.

Seja qual for o imbróglio, em casos como esse o que está em jogo é o poder de transgressão do humor, isto é a sua possibilidade de criticar. Essa característica, aliás, marcou época nas páginas do “Pasquim” no auge da ditadura. Em 1969, ano de seu nascimento, o cerco às liberdades individuais e de expressão estava devidamente ancorado no Ato Institucional no 5 que, entre outras coisas, colocou boa parte da imprensa tradicional sob censura prévia. Como recorda Nani, o clima de terror era tão grande que Ziraldo passava para as mulheres e namoradas dos cartunistas o telefone de advogados.

Segundo Paulo Ramos, jornalista e autor do Blog dos Quadrinhos, naquele momento “qualquer forma de transgressão gráfica era válida para testar os limites da censura e denunciar o sistema autoritário”. Embora o humor combativo estivesse presente na produção da turma da patota, – que abrigou humoristas jovens e veteranos como Jaguar, Henfil, Fortuna, Ziraldo, Millôr Fernandes, Claudius, Hubert e Reinaldo (Casseta e Planeta) etc. – a classe média moralista, os coniventes de plantão, o comportamento e os modos de vida das pessoas e até a ecologia também foram alvos do Pasquim. “O jornal não era essencialmente político, era de esculhambação. Um dos melhores cartuns é um do Ziraldo, que ocupou uma página inteira com o Tarzan e a Jane. Os cartuns do Fortuna da madame com o seu cachorrinho são outro exemplo dessa crítica de costume”, afirma Toninho Mendes.

Marco da história do Brasil, o Pasquim com toda a sua irreverência e o modo criativo de tratar a realidade se tornou uma referência de peso para as gerações de cartunistas posteriores. No entanto, é preciso ressaltar ainda o humor realizado na revista O Cruzeiro na década de 50, sendo Millôr, Carlos Estevão e Péricles, criador do famoso personagem Amigo da Onça, alguns de seus expoentes. Como pontua Paulo Ramos, “em um país que teve trabalhos primorosos na primeira metade do século 20, casos de Loredano e de J.Carlos, fica difícil precisar um momento de auge do humor gráfico”. Apesar dessa imprecisão, por influência do Pasquim nasceu a Circo Editorial, que se tornaria um marco na cultura brasileira dos anos 80 ao redefinir o que todos conheciam sobre o humor e a crítica de costumes.

A geração da Circo

Fundada por Toninho Mendes em 26 de abril de 1984, a Circo Editorial estreou nos tempos inquietantes de “Diretas Já”. O ambiente de abertura política e a expectativa em relação ao futuro deram tom ao ousado projeto da editora: a investida em revistas com temáticas de crítica ao cotidiano urbano das grandes cidades. Não é a toa que a sua primeira publicação, a revista Chiclete com Banana 1, traz uma capa esculhambadora com o Bob Cuspe para prefeito – proeza impensável no auge da ditadura.

O sucesso da Chiclete com Banana, que reunia personagens do Angeli como Skrotinhos, Rê Bordosa e Bob Cuspe, além da colaborações de outros autores como Laerte e Glauco, permitiu a ampliação das publicações da Circo. Assim foram lançadas as revistas Geraldão do Glauco, Piratas do Tietê do Laerte, Circo do Luiz Gê e Níquel Náusea do Fernando Gonsales.
Dentre os temas recorrentes nas diversas histórias e personagens criados pela talentosa turma da Circo, estão as relações humanas: entre homens e mulheres, chefe e empregado, amigos, família, etc. Mas, para Toninho Mendes, um dos grandes temas que acompanha o material da Circo é a transformação do universo das mulheres. “Até a década de 60 as mulheres eram uma coisa, hoje são outra. A relação homem e mulher mudou e isso aconteceu entre as décadas de 70 e 80. Hoje a preocupação não é se a mulher é virgem, mas se ela está se prevenindo contra a Aids. Essa passagem está nas piadas, que foram feitas com base nessa nova realidade”.

Rêbordosa e suas crises existenciais endossam a afirmação. A personagem talvez seja o mais completo retrato da mulher urbana de sua época. Já as inquietações da nova relação entre homens e mulheres, encontram no Casal Neuras um de seus maiores representantes. Sexo, traição, ciúme, vícios e neuroses universais marcam presença nessa criação de Glauco.
Presente no mercado por mais de dez anos, a Circo encerrou suas atividades em 1995 depois de passar por cinco ajustes no padrão monetário nacional, tamanha era a instabilidade econômica. Embora tenha deixado saudades, seu legado continua de certa forma vivo no traço da geração de cartunistas que a acompanhou.

No compasso do movimento da História, o humor de crítica de costumes segue se atualizando. Computadores e celulares integram o enredo das novas piadas e apimentam as neuroses desse mundo conectado, que ainda sofre com inquietações que atravessam as décadas, como o ciúme e a traição. Para Toninho Mendes, um dos personagens representantes desses novos tempos é a Muriel/Hugo, do Laerte. Em constante transição, trata-se de um homem que gosta de se vestir como mulher (crosdresser).

Qualquer semelhança com o fato do próprio cartunista ter assumido a prática do crossdressing não é mera coincidência. É a vida com suas curvas sinuosas dando o tom das novas piadas e mostrando-nos que nada é tão linear quanto acreditamos ser.

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