Revista-da-Cultura-Agosto-2013

Se essa rua fosse minha…

15/08/2013

Nos encontros e desencontros de cada esquina, a “cidade-real” se depara com a “cidade-ficção”. Entre olhares entrecortados pela aspereza das paisagens, a sensação de que é preciso (re)começar

POR: XENYA BUCCHIONI  /  06/08/2013
ILUSTRAÇÃO ELOAR GUAZELLI / FOTOS DIVULGAÇÃO

 

A moça de sapato vermelho atravessa a rua de peito aberto. O quanto há dela nas pegadas que marcam, caminhada afora, a paisagem de concreto? E o quanto deste cenário ela carrega consigo à medida que avança e deixa para trás a cidade de contornos desgastados? Juntas, de mãos dadas, a mulher e a cidade passeiam e, no limite tênue entre aquilo que se é e que deixou de ser ao longo das múltiplas esquinas e retas vencidas, a cidade se desenha.

Desafiadas por essa relação travada por quem vive em espaços urbanos, Eliza Freire e Priscila Ballarin, do coletivo Desejos Urbanos, em parceria com o Cinema de rua, produziram a animação Streets Bloom. Selecionada para a mostra Olho Neles, do Anima Mundi 2013 (sua programação se estende até dia 11 no Rio, e de 14 a 18 em São Paulo), a produção lança um olhar sobre a rua para além da ideia de local de passagem reservada à mesma. “Onde a rua acaba? No instante de um olhar, no atravessar de uma passarela, no estender de nossas memórias ou no tempo em que um passarinho permanecerá no meu bolso?”, indaga a dupla que, neste ano, levou uma revoada de passarinhos coloridos à estação Sumaré do metrô, na capital paulista, apostando na intervenção artística como maneira de estimular e aprofundar a relação entre a urbe e seus habitantes.

Em poucas horas, a curiosidade e, talvez, a vontade de prolongar a experiência, deixaram um pequeno saldo de passarinhos no local. “As reações são diferentes, muita gente para e tira foto, outras passam devagar e vão olhando sem pressa, sem entender muito bem o porquê daquilo e muitas querem simplesmente levar o passarinho”, conta a dupla. Independentemente da motivação, uma certeza se faz presente: a de ser possível abrir fendas nas duras paisagens da metrópole e (re)poetizá-la.

Somente quando se pausa (e, às vezes, com certa ajuda e esforço), é possível perceber a beleza no caos. Quem nunca repetiu aos zilhões que as ruas já não são como antes? O escritor João Antônio, em seu livro Leão-de-chácara, outrora mesmo nos advertira: “Cada rua, cada esquina tem sua cara. E cada uma é uma, não se repete mais”. Mas, então, por que renegamos tamanha preciosidade em potencial e seguimos a viver como se o assunto estivesse preso a um passado distante no tempo e no espaço e, portanto, superado?

As razões não são fáceis de explicar: a violência leva a crer que o espaço público não é seguro e que, portanto, proteger-se da rua garantiria o amparo necessário para se viver uma vida tranquila. O reflexo desse pensamento concretiza-se na profusão de muralhas, cercas elétricas, seguranças uniformizados e câmeras de vigilância que, ao renegar o espaço público, afastam a rua e a entregam, assim, a sua própria sorte, confinando a vida aos espaços privados planejados sob o interesse do mercado imobiliário.

No horizonte, a cidade se projeta como modelo de negócio – altamente rentável, avalia Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, sociólogo e coordenador do Observatório das Metrópoles. É possível, hoje, um casal estar a poucos metros da quadra de tênis, enquanto as crianças brincam no playground. Viver e trabalhar, por ali, é algo descomplicado, ainda mais quando se desfruta da comodidade de ter largas e vastas avenidas próximas. No terreno de mais de 68 mil metros quadrados ofertados por uma das maiores construtoras do país a quem possa pagar, a ficção dá o tom da urbe em que os profissionais de marketing, habilmente, projetam os sonhos de uma vida melhor. Longe dali (ou não tão longe assim), a “cidade real” pulsa.

Em um modelo de urbanização caótico, ela cresce desordenada com a verticalização da paisagem, a impermeabilização do solo – que mostra debilidades a cada chuva forte durante os meses de verão – e a priorização dos investimentos no transporte individual em vez de no transporte público utilizado pela maior parte da população.

Nas muitas ruas que cortam as nossas vidas, dia após dia, algo de inevitável acontece: a “cidade-ficção” e a “cidade real” se encontram. Ao se encarar, uma contradição aflora – a vida na cidade vai mal para todos. No centro do conflito, o embate entre as necessidades e os interesses da população e aquilo que a metrópole de fato oferece aos seus habitantes. “Em sua totalidade, a cidade não é cuidada como riqueza. O primeiro item de uma reforma urbana seria criar um modelo de gestão que a tomasse em sua função de bem-estar e de convivência”, opina Ribeiro.

E AGORA, JOSÉ?
Lembrar-se da rua e de sua feição. Pensar que somos a cidade enquanto andamos por ela para não nos esquecermos de que há sempre um universo inteiro a ser descoberto. O contorno mais evidente desse esquecimento (ou quase abandono) tornou-se fúria na voz e no rosto dos milhares de brasileiros que saíram às ruas nas principais capitais do país contra o aumento da tarifa do transporte público.

Apesar do futuro incerto das mobilizações, que se ramificaram em reivindicações antigas e urgentes – como saúde e educação pública de qualidade –, nossos arquitetos foram unânimes: é preciso ampliar a participação popular nos temas referentes à reforma urbana. “Apostamos em um modelo oriundo da Constituição de 1988, com Conselhos e Audiências Públicas, mas é preciso criar novos formatos e métodos, valer-se das novas tecnologias, para fazer a discussão pública acontecer”, avalia o arquiteto e urbanista Kazuo Nakano, diretor do Departamento de Urbanismo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano de São Paulo.

Como frisa a urbanista Ermínia Maricato, ex-secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano da capital paulista, não faltam argumentos sobre a situação limite a que chegamos. “Refletir sobre aquilo que a cidade poderia (ou deveria) ser e aquilo que ela realmente se torna nos coloca diante da brutal desigualdade que atravessa o país. Não é só o transporte. A especulação imobiliária é devastadora. A vida urbana está se tornando cada vez mais cara e insuportável”, diz ela.

Não seria demais, portanto, interpelar uma vez mais os arquitetos e urbanistas, transmitindo-lhes essas inquietações a fim de saber se, afinal de contas, as grandes cidades – como Rio de Janeiro, São Paulo e Recife (para ficar em apenas três exemplos) – têm jeito.

Foi assim que João Sette Whitaker, arquiteto, urbanista e economista, professor de planejamento urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, tanto da Universidade de São Paulo quanto da Universidade Presbiteriana Mackenzie, lançou outras perguntas: “Até que ponto a sociedade brasileira está realmente indignada – e pronta para mudar  o fato de que quase a metade da população dessas cidades não tem sequer como morar dignamente? Até que ponto a opinião pública e a classe média estão preparadas para que os investimentos públicos sejam, por um tempo, quase exclusivamente destinados aos bairros pobres, visando a redução dessas desigualdades? Até que ponto os donos de carro aceitariam mais trânsito por causa de mais obras de ônibus e metrô? Até que ponto a classe média aceitaria ver seus bairros um pouco menos burilados pela manutenção pública para que se faça, por exemplo, saneamento em toda a periferia? Até que ponto os moradores dos bairros ricos aceitariam conjuntos habitacionais como vizinhos em nome do direito legítimo de todos poderem morar perto do trabalho?”.

Enquanto respostas não se delineiam, as cidades brasileiras continuam crescendo com a legislação mais festejada do mundo no âmbito do urbanismo, o que revela a faceta puramente política dessas questões. Longe de esboçar uma solução individual, a (re)conexão entre pessoas e espaço público perpassa o contato entre os próprios indivíduos: “Sinto que as pessoas estão buscando se organizar e se encontrar para driblar o mal-estar da vida nas cidades. O coletivo formado por quem usa bicicletas é o bom exemplo desse movimento”, diz Gilberto Corso, professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia.

Mas e a rua? Ora. Essa segue misturando toda a gente e enviando o seu recado sobre a (e à) cidade por meio de muros, postes, construções e espaços abandonados. Como uma colcha de retalhos, sua alma emerge na forma de uma conversa inacabada e, portanto, contínua, entre a urbe e seus passantes.

MÚSICA PARA RECRIAR RELAÇÕES
Com uma mochila nas costas e um amplificador na mão, Alessa chegou ao seu encontro com um Friz Dobbert de armário na cor castanha. O piano em questão ocupa lugar cativo no amplo saguão da Estação da Luz, símbolo de uma São Paulo de outros tempos, quando o trem se destacava imponente no ir e vir da metrópole. O pé direito generoso e a inspiração na arquitetura inglesa não deixam dúvidas: a obra foi pensada para trazer à capital paulista os ares dos grandes centros europeus.

Nesse cenário, o mais público dos pianos alcançados pelas mãos de Alessa padece. Adquirido em 2008 pela CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), o instrumento circulou ao lado de outros nove pianos na temporada em que o projeto Play me, I’m yours passou pelo país. Seu idealizador, o artista plástico britânico Luke Jerram, conta que a iniciativa se mantém a pleno vapor, sendo o ponto de chegada da vez a cidade norte-americana de Cleveland. Segundo o artista, tudo começou com sua percepção sobre as muitas comunidades invisíveis existentes nas cidades: “Deve haver centenas de pessoas que gastam, regularmente, tempo umas com as outras em silêncio. A ideia de ocupar os espaços públicos com o piano foi a solução que encontrei para resolver esse problema e provocá-las a se envolver, se ativar, reivindicar a posse da paisagem urbana e expressar-se”.

Na Estação da Luz, sem catracas ou pedidos de permissão, o instrumento está disponível para quem nele queira se aventurar. Basta chegar, sentar e tocar. E foi assim que, no dia primeiro de maio do ano passado, a nossa pianista dedicou aos carregadores de piano – àqueles cujo trabalho se soma a tantos outros ofícios terrestres despercebidos – a Canção do sal, de Milton Nascimento. Foi ali também que ela entendeu ser a sua busca muito maior do que apenas catalogar os pianos públicos disponíveis na cidade. “Quando saí de casa para fazer o projeto acontecer, as coisas começaram a tomar outro rumo. A história das pessoas que param para me ouvir, ou que também tocam, e a minha andança pela cidade me levaram para outros caminhos”, conta ela.

Instrumento elitista, o piano custa caro e tem acesso restrito. Por isso mesmo, quando iniciou os estudos, Alessa se viu obrigada a desistir de tocar para, então, anos mais tarde, retomar de vez a sua trajetória. A birra com as questões em torno do uso do piano, no entanto, não cessaram – daí a necessidade da pianista de se colocar e, ao mesmo tempo, criar um espaço artístico e musical diferente e, se possível, público. “Há pianos sendo tocados ou à espera de ser tocados nos lugares mais inusitados da cidade – em bibliotecas, hospitais públicos, concessionárias de carro. Nesse percurso, fui descobrindo São Paulo, e a cidade passou a fazer parte do meu processo artístico”, diz.

Como uma âncora, o piano observa as ruas da cidade se transformarem. Em torno dele, as paisagens urbanas modificam-se incessantemente, as pessoas sofrem metamorfoses e renovam sonhos, esperanças e certezas. Naquele dia do trabalhador, o centro imponente de outrora, que comporta a Estação da Luz, descarrilhou ao escutar o som das primeiras notas tocadas, escreveu Alessa em seu blog.

Nas teclas quebradas e desafinadas, uma cidade e sua história contada por meio da música. Afinal de contas, também somos os pianos públicos esquecidos por aí, a nos espreitar.

Leia a revista na íntegra.

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