Capa-revista-da-cultura-outubro-2011

Compromisso com a palavra

15/10/2011

O escritor argentino Rodolfo Walsh teve inúmeros ofícios, produziu na fronteira entre o factual e a ficção, antecipou o novo jornalismo de Capote e continua “desaparecido”

Era um dia como outro qualquer. Uma vez mais o carteiro chegava ao sobrado situado na Rua Capote Valente, em Pinheiros, São Paulo. Mal sabia ele, em seu périplo cotidiano, que naquela bolsa abarrotada de correspondências encontrava-se um documento que, horas depois, se tornaria uma manchete bombástica. Estamos em 1977, em plena ditadura militar. Agora, parece um tanto óbvio que documentos como esse e mais uma sorte de outros relatos clandestinos só pudessem ser entregues dessa forma, ali, naquela pequena redação improvisada onde funcionava a pleno vapor o jornal alternativo Versus.

Um envelope, a ânsia por notícias e, finalmente, “A carta da morte” – nome pelo qual a correspondência ficou conhecida entre a equipe da redação. Escrita pelo jornalista e escritor argentino Rodolfo Walsh, a carta em questão era dirigida aos membros da Junta Militar e tratava-se de uma contundente denuncia à bárbara realidade de torturas, desaparecimentos e censuras imposta e sustentada pelo governo ditatorial de seu país. Eis um fragmento de seu início: “1. A censura à imprensa, a perseguição aos intelectuais, o arrombamento de minha casa no Tigre, o assassinato de amigos queridos e a perda de uma filha que morreu combatendo os senhores são alguns dos fatos que me obrigam a esta forma de expressão clandestina, após ter manifestado livremente minha opinião como escritor e jornalista durante quase trinta anos. O primeiro aniversário dessa Junta Militar motivou um balanço da ação governamental em documentos e discursos oficiais, em que aquilo que os senhores chamam de acertos são erros, aquilo que reconhecem como erros são crimes, e aquilo que omitem são calamidades” (Carta aberta de um escritor à Junta Militar, Operação Massacre, 2010).

Datada de 24 de março de 1977, seu conteúdo fora replicado e disparado para redações locais e estrangeiras. Como conta Omar L. de Barros Filho, ex-editor de Versus, o jornal foi o único que a publicou na íntegra – atestando o cumprimento de seu papel de imprensa alternativa. Não fosse o carteiro-repórter e a ousadia da equipe, as últimas linhas de Walsh teriam ficado obscuras tal qual o seu sequestro no dia seguinte à publicação da carta em diversos jornais no exterior. De lá para cá, 31 anos se passaram e o seu nome permanece na extensa lista de desaparecidos políticos da ditadura militar argentina, embora haja testemunhos de que ele fora assassinado ao sair de casa.

Mas, afinal de contas, quem foi Walsh e o que o levou a escrever tal carta num momento em que as palavras convertiam-se em provas suficientes para os caminhos – muitas vezes sem volta – dos porões sombrios do cárcere?

Romance e ficção

Cronista, jornalista, tradutor, escritor, militante e dramaturgo. Foram tantos os ofícios de Walsh que é difícil defini-lo apenas por suas ocupações. Embora todas sejam peças-chave para a compreensão de sua pessoa, é no conjunto da obra que encontramos elementos reveladores sobre a personagem híbrida do jornalista. “Sua obra fica em um território de fronteira entre o factual e o ficcional, sendo possível pensá-lo ora como uma espécie de jornalista-escritor ora escritor-jornalista”, analisa Marcelo Magalhães Bulhões, professor de jornalismo literário na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

A fascinação pelo gênero policial dá origem às suas primeiras publicações, em 1953: Diez cuentos policiales argentinos e Variaciones em rojo (esgotado). Ambas, além de marcarem a literatura policial argentina, contêm os ingredientes do que viria a ser a sua grande obsessão anos depois: a investigação de crimes. Graciela Foglia, conterrânea de Walsh, pesquisadora de sua obra e professora do curso de Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) aponta que um dos aspectos interessantes dessas produções iniciais é a forte influência dos contos policiais ingleses à la Sherlock Holmes, quando a justiça sempre triunfa no desfecho da narrativa. Tal característica segue até o seu envolvimento com os acontecimentos que o levam a escrever Operação massacre, publicado em 1957.

O acontecimento fundamental da narrativa do livro em questão é um fuzilamento. Sentado em um café de La Plata, província de Buenos Aires, em meio a uma partida de xadrez, é que o autor se verá envolvido nesse crime. Tomada por levantes contra o governo militar instalado desde a queda de Perón, a cidade adormece entrincheirada enquanto um grupo de civis tem sua sentença de morte decretada antes mesmo da lei marcial entrar em vigor. A ação poderia ter sido um sucesso, não fosse o surgimento de alguns sobreviventes meses após o incidente, dando as pistas necessárias à investigação conduzida clandestinamente por Walsh. “A partir daí, ele narra o factual tomado pela urgência dos acontecimentos dramáticos da vida argentina e, assim, ‘Operação’ vai sendo marcada por uma estrutura com elementos do ficcional sem se constituir como ficção, pois os fatos são verídicos”, explica Bulhões. Em outras palavras: nascia uma obra que antecipara em quase dez anos o que Truman Capote viria a fazer em A sangue frio, o chamado new journalism ou jornalismo literário.

A militância política

Ainda imerso no universo da investigação e da violência do Estado, Walsh escreve ¿Quién mató a Rosendo? (1969) e Caso Satanowsky (1973). Entre a escrita de um e outro, viaja para Cuba, em 1959, e começa a colaborar na Prensa Latina, dirigida por Jorge Masseti. Ali, vive um episódio curioso: “Walsh decifra uma mensagem da CIA com indicações sobre uma invasão dos Estados Unidos ao país”, conta Foglia. Com a ajuda de um livro comprado em um sebo, ele descobre sua habilidade para mais um ofício: o de criptógrafo.

Na ilha, o contato com outros escritores latino-americanos simpáticos à revolução, como o mexicano Gabriel García Marquez, contribui não só para o envolvimento de Walsh com a política, mas, também, para a reflexão sobre a relação entre arte e política. Em entrevista ao escritor igualmente argentino Ricardo Piglia, o tema vem à tona na oposição do romance à literatura de testemunho: “A denúncia traduzida para a arte do romance se torna inofensiva, não incomoda em nada, quer dizer, sacraliza-se como arte”. Embora aposte no futuro do testemunho e do documental como arte, o elemento ficcional perpassa toda a sua obra. Na opinião de Foglia, talvez, esteja nessa ambiguidade o lado mais interessante da figura de Walsh. “Não o vejo como herói, mas sim como um ser humano dotado de contradições, mas com um forte compromisso com aquilo que escreve e com a vida”, afirma.

De volta a Buenos Aires e, depois de publicar Los ofícios terrestres (1965) e Un kilo de oro (1967), Walsh se aproxima do peronismo e torna-se responsável pelo periódico CGT – mantido pela central de trabalhadores argentinos. O estreito laço com a militância o leva, em 1973, à organização Montonera, a qual, anos mais tarde, ele faria duras críticas por sua crescente militarização. Em 1976, é surpreendido pela morte precoce de sua filha primogênita Maria Victoria, aos 26 anos, em um enfrentamento com os militares. Vicky, assim como o pai, também fora militante montonera. Após receber a triste notícia, Walsh escreve Carta a Vicky “cujos destinatários implícitos são aqueles que perderam pessoas queridas na batalha”, analisa Foglia. O tom da carta é de despedida e nela, temos um Walsh mais subjetivo, agora, na figura de pai ao falar de seu orgulho por tê-la como filha. O jornalista é, também, pai de Patrícia Walsh – ambas são fruto de seu primeiro casamento.

Ainda em 76, funda a Ancla (Agência Clandestina de Notícias) e reafirma, novamente, seu compromisso com a palavra, utilizando-a como instrumento de combate. Com informações obtidas na Agência, redige a carta que o deixaria na mira dos inimigos e seria entregue ao Versus. Para Omar L. de Barros Filho, o fim trágico de Walsh não poderia ser diferente, é fruto de uma época, ainda, bastante sinistra.

Tags:, , ,

Leave a Comment