Revista-da-Cultura-Junho-de-2013

Na fronteira do (im)possível

15/06/2013

Longe de reservar um pote de ouro no fim do túnel, a utopia nos projeta por caminhos tortuosos e incertos, mas que revelam a capacidade criativa (para o bem ou para o mal) dos homens

POR: XENYA BUCCHIONI  /  06/06/2013

Ativistas dos direitos humanos, em 1968, desafiam a Guarda Nacional americana em protesto após a morte de Martin Luther King Jr., em Memphis, no estado de Tennessee (Foto: Corbis)

 

Um guri com seus 22 anos. Repleto de sonhos e problemas que imaginava únicos. É a história corrente de quando se é jovem. Mas não: naquele ano, não havia tempo a perder. Como participar do mundo real conservando intacta toda a sensibilidade perante esse mesmo mundo? As porradas costumeiras inerentes a essa busca – ora, a busca pela vida – continham um algo mais. Ao menor descuido, a pele estalava nos porões de órgãos repressores como o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), vinculado ao 2o Exército de São Paulo. A paisagem sombria desfazia-se, lentamente, entre um e outro balanço do trem, à medida que o branco brilho da Cordilheira dos Andes saltava aos olhos. Na estação, a cena devastadora. Outro guri, também repleto de sonhos e problemas que imaginava únicos, e a constatação do estranhamento. De que o rumo seria diferente a partir dali, daquela entrada no Chile, em 1971.

Com os olhos fixos naquele jovem, Enio Araújo, hoje com 65 anos, e professor em cursinhos pré-vestibulares, tentava elaborar um raciocínio. Mirando a camiseta que o garoto vestia, ele finalmente entendeu estar diante de uma liberdade desconhecida. “Se estivesse no Brasil, esse moleque estaria morto. Uma camiseta do Che na ditadura, no auge do governo Médici, era algo impensável”, argumenta. Fresca, como uma espécie de boas-vindas ao Chile, a imagem da estação dava sinais de que naquela nação havia espaço para a utopia descer às ruas.

Pelo tempo que lhe foi possível, Araújo não precisou ter medo – de falar, sair com os amigos, ler um livro em um banco qualquer na praça ou em um café. E não precisar ter medo, em tempos de incerteza, despertava-lhe uma tímida satisfação, que colocava em suspenso qualquer ameaça de sentimentos desoladores. Contar essa história, agora, em tempos em que as redes sociais e suas múltiplas vozes se espraiam no cotidiano, nos coloca diante de um passado empoeirado, que, muitas vezes, custamos a crer que existiu.

Longe de assumir a síndrome da nostalgia, advertência dada pelo escritor Zuenir Ventura, autor do emblemático1968 – O ano que não terminou, a aposta aqui é pensar o presente na tensão permanente entre um passado esquecido e um futuro incerto. Ou seja, no terreno de possibilidades da utopia, termo tão avacalhado através dos tempos e, no entanto, visceralmente ligado à nossa humanidade. O historiador Elias Thomé Saliba, professor da USP e autor do livro As utopias românticas, vai além, ao dizer que “a rigor, filosoficamente, o presente é uma linha imaginária, pois estamos sempre nos projetando. O passado é tudo o que temos. É o que nos fornece perspectivas”.

Assim, no mês em que Che completaria 85 anos, qual o sentido do passado vivido pelas gerações dos 1960 e 1970? Que legado nos restou? O que merece ser resgatado? E o que não encontra mais sua razão de ser?

SONHO OU REALIDADE?
Os primeiros choques levados por William Martani, na sessão de tortura pela qual passou no Dops (Departamento de Ordem Política e Social), em 1971, foram fortes o suficiente para ele, hoje com 65 anos e aposentado como fiscal da Receita Federal, encarar a nudez do momento vivido e, ainda assim, reafirmar o seu espírito utópico. Afinal de contas, depois daquele maio de 1968, nada parecia ser como antes. “Sejamos realistas, peçamos o impossível”, era o slogan de uma geração que ousou lutar por seus sonhos alimentando-se da realidade para projetar novos caminhos. E as aspirações não poderiam ser diferentes no contexto de uma América Latina marcada por ditaduras em gestação ou em plena ação: “O gérmen de futuro você vê num presente degradado”, pontua Saliba.

No cerne do embate, uma discussão antiga: a possibilidade de o homem criar-se a si próprio. Muito antes de os ventos do socialismo arrebatarem os corações juvenis ou da onda do “peace and love” arranhar a maneira de vivenciar o sexo – e com ele o terreno adjacente da sagrada família – , os homens da Renascença já haviam desafiado a fogueira santa em nome de um humanismo em que os indivíduos tivessem seu papel e espaço na construção do mundo ao seu redor. Utopia em ação?

Para a historiadora francesa Michèle Riot-Sarcey, em introdução ao chamado Dicionário das utopias, melhor seria pensarmos na ausência de uma definição unívoca sobre o tema. “A exigência consiste em não se satisfazer com a palavra, mas em reencontrar o sentido de uma construção imaginária, em um dado tempo, assim como na sucessão das temporalidades que, no curso da história, veem esse sentido transmitir-se e transformar-se ao sabor das interpretações e das apropriações sucessivas.”

A VISÃO DE MORUS
Concebido a partir da análise da obra Utopia, publicada por Thomas Morus, em 1516, o conceito corrente do termo guarda estreita relação com a narrativa criada pelo autor. Explica o professor Carlos Eduardo Ornelas Berriel, coordenador da revista Morus e professor de literatura da Unicamp: “A primeira parte do livro traz um diagnóstico social extremamente radical da situação da Inglaterra, que passava por um período de intensa urbanização e, portanto, por uma situação bastante caótica. Já na segunda parte, Morus fala de uma viagem a um lugar imaginário, em que tudo ocorria exatamente ao contrário da Inglaterra”. De modo satírico, fala-se da Inglaterra – ou melhor: de como ela poderia ser.

Por isso, ao definirmos utopia, é lugar comum nos fixarmos em seu duplo sentido derivado das raízes da língua grega – o de ser um “lugar que não existe” ou, ainda, um “lugar onde se está bem”. Examinadas com cuidado, ambas as definições se encontram em um ponto comum: o de se constituírem a partir de um discurso sobre o não existente – daí a associação da utopia a uma quimera, ao delírio dos indivíduos incapazes de “ver a realidade”.

O que dizer, então, do rosto de Che estampado nos mais variados acessórios da atualidade – de camisetas a capas para iPhone? Qual o sentido da apropriação da imagem desse mito latino-americano em um mundo que se diz de liberdades garantidas? Para o jornalista Eric Nepomuceno, cuja trajetória profissional sempre esteve voltada à “descoberta” da América-Latina, mais que personagens e símbolos é a si própria que a América-Latina precisa resgatar. “Nesse resgate, naturalmente, ressurgirão nomes, pensamentos, lições, caminhos que foram abertos no passado e, depois, truncados. Não acredito em símbolos, acredito em legados, em heranças”, afirma.

CRISE DE PERSPECTIVAS
Da prisão à clandestinidade, William Martani avistou uma saída que o colocaria, por mero acaso, mais próximo de sua utopia. A partida do Brasil se deu no Carnaval, ocasião considerada propícia para atravessar o país pelo sul rumo ao Uruguai. “Passamos pela fronteira em um fusquinha, eu e minha mulher, na companhia da minha irmã e do meu cunhado, que simulavam um casal”, conta Martani, que, após alguns dias de travessia, bateu à porta de Enio Araújo, amigo de adolescência e de militância na base da extinta Ação Popular (AP).

Sem saber, ambos estavam a alguns meses do golpe militar liderado por Augusto Pinochet, que deporia o governo de Salvador Allende, em 1973, para instaurar uma das mais sangrentas ditaduras da história da América Latina – e, ainda, os faria desconstruir algumas de suas utopias anos mais tarde.

É certo que, até ali, as poucas notícias sobre a Primavera de Praga, massacre encabeçado pela ex-URSS na Checoslováquia (extinta em 1992 e dividida em República Checa e Eslováquia), em 1967, como forma de conter os avanços democratizantes desejados pelo governo comunista checo, já haviam polarizado a esquerda em todo o mundo e, também, influenciado os amigos a analisar novamente suas convicções. “Esse fato nos obrigou, pela primeira vez, a rever o regime existente no Leste Europeu e em Cuba. Além disso, nos colocou à frente um dilema: perseguir a nossa utopia por outro mundo possível a partir de novos referenciais”, explica Araújo.

E foi, justamente, a possibilidade de conseguir ver de perto o que se passava em Cuba que levou Martani a aceitar o desafio de exilar-se neste país. Refugiado na embaixada do Panamá, após o golpe militar chileno, ele contou com a ajuda de Betinho, o sociólogo Herbert de Souza, também militante da AP, para conseguir pousar em solo cubano. “Na época, Cuba era o sonho da possibilidade de fazer uma sociedade diferente daquela que nós conhecíamos. O Che havia morrido em 1967. Sabíamos de sua história e todo esse universo era algo muito mítico para nós”, recorda.

No encontro com a utopia, uma constatação: “Talvez seja mais fácil tomar o poder do que realizar, de fato, as transformações desejadas. Combater o individualismo não pode significar a eliminação da criatividade humana”, pondera. Hoje, sabemos que o homem novo esperado por Che não aconteceu. O que não significa que o povo cubano não tenha tentado alcançá-lo. Durante os seis anos vividos em Cuba, Martani pôde presenciar inúmeros recomeços. Tentativas que, aos olhos de hoje, parecem pueris. Perdidas no tempo e espaço reservado aos grandes sonhos coletivos, que parecem não ter mais um lugar.

Na fronteira do (im)possível, vemos as utopias, pouco a pouco, se tornar um canteiro de violência. Facetas perversas foram erguidas – a mais conhecida, na figura de Joseph Stalin – e nos colocaram, coletivamente, em uma crise de perspectivas em relação ao futuro, como explica Saliba.


O FIM?
Há mais de 20 anos, com a queda do Muro de Berlim, as utopias ou são lembradas por sua morte ou pela identificação com o totalitarismo. Seja como for, ela incomoda sobretudo àqueles que se resignam dia após dia.

Para Zuenir Ventura, existe má vontade em relação ao tema. “Se nós não sonharmos, se não tivermos esperanças, então vale o discurso do ‘nada adianta’. Tudo será estático e apático”, avalia. Nesse cenário, o presente torna-se, por vezes, truncado, fermentando, por exemplo, a volta da religião ao obscurantismo.

Na dificuldade de projetar um futuro, Saliba enxerga em nossa época uma profunda distopia. “Sabemos o que não queremos: não ao racismo, à discriminação, à miséria etc. Mas o que virá depois disso, nós não sabemos desenhar”. Ainda assim, não por acaso, uma das mensagens ecoadas nas manifestações ocorridas na Catalunha, durante os protestos que tomaram conta da Espanha, em 2011, frente à crise econômica e ao crescente desemprego, foi a inquietante sentença: “Se não nos deixarem sonhar, não os deixaremos dormir”. Talvez a prova derradeira de que quanto mais se nega a utopia, mais se produzem as condições para a sua realização.

Quanto à história (ora!), ela nos prega surpresas. Um dos últimos sobreviventes a sair da terrível prisão improvisada pela ditadura chilena no Estádio Nacional, Enio Araújo seguiu para a França e, de lá, para Portugal, onde o sopro de esperança da Revolução dos Cravos reabasteceu o seu estoque de utopias. “Foi um daqueles raros momentos em que a existência faz total sentido. Me vi em cima do tanque do exército, com uma bandeirinha vermelha na mão, ao lado – e não contra – os militares, a favor da queda de uma ditadura de quase 50 anos. Vivíamos outros tempos. Nem piores, nem melhores”, recorda.

Certamente, os tempos eram outros. Há quem diga que as novas gerações são antiutópicas. Outros, que vivem presas a um passado mítico-glorioso. No plano de fundo, uma questão se desenha: seria possível viver com utopia hoje? Deveria ser. Deve ser.

 

Leia a revista na íntegra.

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