Revista-da-Cultura-dez-2012

Varal digital

15/01/2013

Das feiras aos livros, com passagem pelas histórias em quadrinhos, a literatura de cordel se torna game, chega aos tablets e continua se reinventando em produções cada vez mais antenadas às inovações tecnológicas

POR: XENYA BUCCHIONI  /  03/01/2013

Foto: Divulgação

Preto no branco. Branco no preto. Eis a imagem comum do cordel. Feita pela graça e pelo gesto preciso da xilogravura, ela estampa a capa dos pequenos folhetos narrados em forma de poesia e cantados ao mundo em ritmo marcado. Seja no compasso do repente, do baião ou da embolada, a literatura de cordel atravessou os tempos até chegar às telas – do cinema, do computador e, agora, dos tablets. Para o cordelista Arievaldo Viana, cuja paixão por esse gênero literário veio cedo, ainda no oitão de sua infância no sertão central do Ceará, “a maior evolução do cordel foi libertar-se do seu formato tradicional e buscar novos suportes, sem perder a sua essência”. Na bagagem dos anos, uma característica parece prevalecer: o encantamento de saber contar histórias para um público heterogêneo.

JEITINHO BRASILEIRO
Foi decidido a trazer a riqueza de elementos da cultura nordestina para o universo digital que Rodrigo Motta, designer paraibano e professor do curso de Jogos Digitais da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas, em Campina Grande, aproximou o cordel das histórias e lendas do folclore, contadas por seu sogro, para dar vida ao game Xilo – vencedor do SBGames 2011.  “A cultura da nossa região nos deu várias coisas que poderíamos usar em um jogo: a estética em xilogravura, a trilha sonora em forró ou baião e a história em cordel”, conta.

Desenvolvido com a ajuda dos alunos Trigueiro Júnior, Diego Braga, André Torres e Arthur Padilha, o game centra-se na figura do sertanejo Biliu, que, embalado pelas músicas da banda Cabruêra, se vê às voltas com personagens bem brasileiros, como a Mula sem cabeça, o Curupira, o Boitatá, a Cumadre Fulozinha, entre outros. O objetivo? Enfrentá-las para recolher as peças de xilogravuras sagradas até chegar ao destino final da partida – o qual Rodrigo mantém em segredo, já que o game será lançado nas festividades do próximo São João, inicialmente em versões para PC, Mac e iPad.

Diferentemente de uma HQ ou de uma animação, no game, a adaptação dessas histórias vem acompanhada de vários desafios e recompensas que envolvem o jogador em sua mecânica. “Esse é o maior valor do Xilo. Deixamos essas expressões culturais o mais amarradas possível. Os versos do cordel, por exemplo, não são um produto por si só, eles servem ao jogo, por isso não existem separados dele”, diz Motta.

Talvez por isso, o game venha sendo visto pela crítica especializada como uma espécie de divisor de águas, já que em sua proposta há brechas para uma discussão, cada vez mais presente no cenário nacional: como é o jeito brasileiro de fazer jogos?

NOVAS LINGUAGENS
Para entender um dos lados dessa tal brasilidade e conceber sua primeira animação digital, Ítalo Cajueiro, cineasta pernambucano radicado em Brasília, mergulhou na leitura de mais de cem folhetos de cordel. A entrega foi tanta que ele até se matriculou em um curso de xilogravura para aprender o processo de talhar a madeira e pensar o contraste entre o preto e o branco.

Assim nasceu a animação O lobisomem e o coronel, feita em parceria com o amigo de longa data Elvis Kleber. Concebida desde o princípio com base na literatura de cordel, ultrapassou as fronteiras tradicionais ao valer-se da estética 3D para dar vida às personagens. E, no desenvolvimento destas, outro diferencial: com exceção do lobisomem e da vaca Belezura, todas as personagens têm movimentos inspirados nos mamulengos e no brinquedo infantil do malabarista de madeira – estratégia que diferenciou a produção das obras de grandes estúdios, como a Pixar e a Disney. “Como estávamos trabalhando com o universo do cordel, começamos a pensar que tipo de movimento nossos personagens poderiam ter. Então, optamos por uma animação em formato chapinha, onde os personagens têm frente e verso, algo que era novidade na época”, conta Cajueiro.

A adaptação poética da história ficou por conta de Chico de Assis, repentista de Brasília, que usou 11 modalidades diferentes de métricas de cordel na narrativa – singularidade que provocou um frio na barriga do diretor no momento em que a animação emplacou nos festivais. “Achávamos que seria difícil para as pessoas entender a história devido à métrica, a maneira de narrar os termos da literatura e a musicalidade rápida”, explica Ítalo.

Mas, para sua surpresa, O lobisomem e o coronel foi a primeira animação a levar o prêmio de Melhor Filme Brasileiro no Festival Animamundi, em 2002, além de ter vencido na categoria Melhor Filme pelo Júri Popular – isso sem contar a aceitação no exterior, que levou a exibições em  mais de 20 países, entre os quais Índia, Japão, Canadá, França e, até mesmo, a distante Ucrânia.

Feliz com o resultado, Ítalo partiu para a sua segunda produção: A moça que dançou depois de morta (2003), uma adaptação do cordel de J. Borges com quem o cineasta havia entrado em contato por conta de sua pesquisa de mestrado e de quem adquiriu os direitos autorais. Das mãos do artista saíram as xilogravuras que compõem a animação, atestando as múltiplas possibilidades de configuração estética do universo do cordel para o digital.

VOZ, COR E MOVIMENTO
Estratégia semelhante foi utilizada na criação de O cangaceiro, de 2010, produção realizada pelos integrantes do projeto Animando Histórias, idealizado e coordenado por Marcos Buccini, professor do curso de design do Centro Acadêmico do Agreste, da Universidade Federal de Pernambuco, em Caruaru.

Feita a partir dos versos de cordel escritos por um aluno, a animação conta a saga do mito Lampião e tem sua música também composta pelos estudantes – fruto de uma frente de trabalho que utiliza a mão de obra desses jovens, estimulando-os ao envolvimento com o curso de design e com a disciplina 2D, ministrada por Marcos.

Vencedor como Melhor Animação no Festival de Curtas-Metragens de Faro, em Portugal, e no 7º Festival de Cinema de Cascavel, no Paraná – ambos realizados neste ano – O cangaceirotrabalha aspectos diferentes de cada linguagem: a do cordel e a do audiovisual. “O cuidado que tivemos foi de preservar alguns traços, como, por exemplo, o movimento, que é mais duro, para manter o aspecto da literatura de cordel e da xilogravura”, explica Buccini.

Não se trata, portanto, de pensar essas novas produções como representantes legítimas do cordel. Até porque, muitas vezes, a métrica correta não é respeitada, o que, para Felipe Júnior, presidente da União dos Cordelistas de Pernambuco, distorce a técnica exigida pela tradição. Mas, como explica Buccini, o que está em questão é o caráter híbrido das experiências abertas pelo digital. “Quando o Chico (Science) apareceu com a proposta do manguebeat, fazendo a mistura do regional com o internacional e usando elementos do maracatu, muita gente foi para a Zona da Mata assistir ensaio. Gente que, até então, não curtia maracatu.”

Na visão de Ítalo, a manifestação tradicional e as novas produções não competem: elas se reforçam. “Costumo perguntar para o público, quando mostro as minhas duas animações, de qual versão eles gostam mais. A reação é sempre meio a meio, o que mostra, para mim, que o cordel tem componentes tão sólidos e interessantes que você pode variar a manifestação visual e, ainda assim, o aceitarão”, diz.

ONTEM E HOJE

Até mesmo cordelistas populares tradicionais já aderiram às novidades tecnológicas. É o caso de Arievaldo Viana, que mantém dois blogs sobre literatura de cordel – juntos eles atingem uma média de 1.200 visitas diárias, com visualizações em mais de 30 países. Ao ser questionado sobre a utilização desse meio para a divulgação de seu trabalho, o poeta é enfático: “O papel da internet é o mesmo que o rádio teve nos anos 1940 e 1950, e a televisão a partir da década de 1960. Alguns pesquisadores afirmaram categoricamente que ambos iriam decretar a morte do cordel e isso não aconteceu. O cordel segue influenciando o cinema, a literatura, a música, o teatro e a TV”, diz.

Atento às questões de direitos autorais em ambiente online, Viana resgata uma prática antiga dos velhos mestres folheteiros, que só liam a história até a metade – para saber o desfecho, só pagando (agora no universo online).

 

 

 


ENSINO E APRENDIZADO

Em tempos de discussão sobre a tecnologia na sala de aula, produções como XiloO lobisomem e o coronelO cangaceiro, entre outras, podem ser um prato cheio para os alunos.  E não é que o interesse por parte dos educadores também acontece?

Rodrigo Motta diz ter perdido a conta de quantos e-mails recebeu de professores interessados em utilizar o game Xilo em sala de aula. “E nós nem consideramos o jogo educativo, embora ele possa ser usado pelos professores por conta de suas representações culturais: a estética, a música e o cordel.” Neste caso, explica Paula Carolei, coordenadora do curso de Tecnologias na Aprendizagem, do Senac (SP), “o game pode ser uma experiência, uma possibilidade de experimentação para os alunos, mas deve ser discutido a partir da criação de uma atividade educacional feita pelo professor”. É essa iniciativa que diferencia uma apropriação dos jogos de maneira estratégica daquelas que os usam apenas como um recurso – o mesmo vale para o audiovisual.

Para o professor Muniz Sodré, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, falta ao circuito formativo, justamente, uma abertura para a experiência, lugar em que a singularidade cultural acontece. Em seu mais recente livro publicado,Reinventando a educação, ele traz para o centro da discussão a necessidade de incorporação do arcabouço de saberes e conhecimento da oralidade no processo de ensino.
“Quando você pensa, por exemplo, nesse laço entre o cordel e a tecnologia, percebe que a tecnologia aponta para a diversidade, então é preciso considerar o que a cultura nordestina diz, assim como a cultura negra, a cultura da periferia urbana etc. Para isso, temos que refletir mais sobre o que o logia tem a nos dizer, em vez do tecno.”

Leia a revista na íntegra.

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